Dizem que só damos valor a alguma coisa a partir do
dia em que a perdemos.
Há duas semanas o Museu Nacional do Rio de Janeiro
incendiou e com ele foi “cremada” parte significativa do patrimônio histórico
do país. Lá estava “guardada” uma página importante da história de Torres,
contada através de artefatos arqueológicos coletados ao longo de quase 40 anos pelo
comerciante e curioso Balbino de
Freitas.
Poucos torrenses conhecem a história da Coleção
Arqueológica Balbino de Freitas, e os que conhecem não sabem de alguns detalhes
que só agora, depois de seu desaparecimento, serão esclarecidos.
Conta
a lenda que Balbino de Freitas era o maior, e único, comerciante de secos e
molhados da vila de Torres. Na sua casa, ao lado da antiga Prefeitura
(Intendência), estava instalado o seu armazém e nele era vendido todo o tipo de
mercadorias que se possa imaginar que existia naquela época (1900). Além disso,
ele fabricava os refrigerantes que lá vendia, assim como um molho, o “Molho
Brasil”, conhecido e apreciado em todo o território nacional.
Outra
faceta de Balbino de Freitas era a de curioso colecionador, dizem que gostava
de escavar os diversos Sambaquis da região em busca de artefatos arqueológicos.
E como existiam vários e imensos Sambaquis, sua coleção cresceu a ponto de
chamar a atenção de colecionadores e de museus no Rio Grande do Sul, na
Argentina e no Rio de Janeiro.
[...] por iniciativa
própria, coletava e colecionava artefatos indígenas nos arredores de Torres, no
Estado do Rio Grande do Sul. Ele reuniu peças fundamentais para pesquisas que
contam a história dos habitantes do município na época da sua formação.
Contavam
que a casa de Balbino foi um dos primeiros museus arqueológicos do Brasil e que
pela quantidade de itens e pela falta de espaço adequado, ele teria doado ou
vendido a sua coleção para o museu Nacional do Rio de Janeiro. Não se conhecia,
ou não havia sido contado os detalhes da saída da coleção de Torres para o Rio
de Janeiro.
Após
uma pesquisa em livros, nos arquivos do Museu Nacional e em uma tese de
mestrado de Helena Vieira Leitão de Souza, intitulada “A Coleção Balbino de
Freitas e o Museu Nacional” ficou mais fácil encontrar respostas às dúvidas e
lacunas desta interessante história.
Então
iniciamos pela localização e identificação da Coleção Arqueológica Balbino de
Freitas. Ela era de propriedade do Museu Nacional da Universidade Federal do
Rio de Janeiro (MN/UFRJ), também conhecido como Museu Nacional da Quinta da Boa
Vista ou simplesmente Museu Nacional, localiza-se na cidade do Rio de Janeiro,
sendo o maior museu de história natural e antropologia da América Latina. De
acordo com informações do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, ela foi comprada
por intermédio de Mário de Freitas, um dos herdeiros de Balbino Luiz de Freitas,
por trinta contos de réis.
A
Coleção Arqueológica Balbino de Freitas apresenta algumas características que
permitem reflexões sobre a importância do patrimônio arqueológico, formação de
coleções por particulares e a aquisição dessas por museus públicos e a
importância do tombamento como política de preservação. Algumas peças estão na
exposição permanente do Museu Nacional e outras guardadas em Reserva Técnica do
Departamento de Arqueologia. As que estão expostas, se encontram em duas salas
referentes à Arqueologia Brasileira: na sala de povos horticultores e na sala
de sambaquis.
Um dos destaques da
Coleção é um cesto (artefato sambaqui) que foi revestido internamente com
resina, conservada apenas em parte e foi coletada em um sambaqui do litoral
meridional brasileiro. Trata-se de uma peça rara, em virtude da dificuldade de
preservação de materiais orgânicos em climas tropicais.
A Coleção Balbino de Freitas foi vendida ao Museu Nacional
pelos seus filhos e não por ele próprio. Não que ele não tenha tentado vendê-la
antes de sua morte. Na verdade ele já havia vendido uma parte para o Museu
Paulista durante a direção de Hermann Friedrich Albrecht von Ihering, cerca de
180 peças, de acordo com relato do próprio filho. Outra parte, também informado
pelo filho de Balbino de Freitas, tinha sido vendida para dois alemães anos
antes da primeira venda, como descrito nesta carta escrita possivelmente pelo
naturalista do Museu Nacional, José Vidal.
Sabe-se da intenção de venda
da coleção pelo próprio colecionador através de cartas enviadas ao Museu
Nacional, a primeira em 08 de Julho de 1931 endereçada ao diretor Edgar
Roquette Pinto. A correspondência foi escrita de próprio punho e descrevia as,
até então, 300 peças. A intenção de vender está expressa no final da carta,
logo após a assinatura está a seguinte frase: “esta collecção está a venda”.
A carta seguinte, em 29 de
Agosto de 1931, respondida à professora Heloísa Alberto Tores, professora chefe
da seção de antropologia e etnografia, já trazia informações sobre a
procedência e preço da coleção.
Nessa primeira relação,
podemos chamar a atenção para a presença de “bichos de pedra” (zoólitos).
Algumas peças foram desenhadas por Balbino, para explicar melhor a sua forma.
A segunda carta de Balbino de Freitas
chama a atenção para uma mão de pilão “adquirida” por ele e que estaria em
perfeito estado, e também para um “cachimbo de barro com a efígie de um bugre”,
também em bom estado e, segundo Balbino, uma peça raríssima. Ele então oferece
essa coleção ao Museu Nacional pelo preço de trinta contos de réis.
Conforme
Helena V. L. de Souza, a comunicação entre Balbino de Freitas e a equipe do
Museu Nacional foi interrompida e somente retomada com a terceira carta do
colecionador, datada de 24 de maio de 1935, encaminhada ao diretor do Museu
Nacional, o professor Roquette Pinto.
Esta
carta parecia mais formal que as outras, pois estava datilografada em papel
timbrado de sua fábrica (Molhos Brasil). Nela havia uma nova listagem de sua
coleção com 589 peças já com o novo valor de venda: cinquenta contos de réis.
A resposta
da chefe da seção de Antropologia e Etnografia, Heloisa Torres, está datada de
11 de dezembro de 1935, e nela consta a recusa da compra pelo Museu Nacional
com a alegação de o preço ser muito elevado, mas indicando o interesse do museu
pela coleção.
Em
02 de novembro de 1936 Balbino Luiz de Freitas faleceu de miocardite em sua
casa, e após dois anos reiniciaram as negociações para a venda da coleção,
agora através dos herdeiros.
Primeiramente
José Luiz de Freitas, um dos 15 filhos de Balbino, formaliza um pedido de
tombamento para a coleção e provavelmente este tenha sido o passo inicial da
nova negociação. Além de José Luiz de Freitas, fazem parte da negociação outros
três personagens, Mário Luiz de Freitas (filho de Balbino), José Vidal (Naturalista
enviado pelo Museu Nacional) e a Heloisa Alberto Tôrres (na época, diretora do
Museu Nacional).
De acordo com Helena V.L. de Souza a
Coleção Balbino de Freitas, por encontrar-se dentro do Museu Nacional não deixa
de ser uma coleção arqueológica, porque estar em um museu não é a única forma
de se constituir como patrimônio, mas é uma das mais eficazes. Estando em um
museu ela passa a apresentar uma outra face que a diferencia daquelas mantidas
em universidades, laboratórios e outros tipos de instituições, passa a ter
também o status de coleção museológica, ganhando assim um outro valor, da qual
não pode mais se dissociada.
A coleção de Balbino, depois de sua
morte, esteve sob os cuidados de seu filho Mário Luiz de Freitas, armazenada na
sua casa/mercado. Estas peças, aparentemente, sofriam ataque de insetos e as
cerâmicas estariam ameaçadas pela falta de ventilação no ambiente, e como já
existia a intenção de vende-la por parte de Balbino, seu filho deixou bem claro
que também queria a venda, insistindo em cinquenta contos de réis, mas poderia
fazer um “preço especial” de quarenta contos de réis. Porém não venderia as peças
isoladamente, somente a coleção inteira, e caso o Museu Nacional fizesse a
compra, outras peças seriam acrescentadas à coleção.
Um dos pontos mais interessantes sobre a
coleção é de que a maioria das peças tem sua procedência descrita como
“sambaqui”, todavia de acordo com o próprio senhor Mário Luiz de Freitas, a
maioria das peças foi encontrada “na areia, soltas ou enterradas, muito distanciadas
dos Sambaquis”.
Essa particularidade foi constatada pela
pesquisadora Helena de Souza, que confirma que os Sambaquis são formados
principalmente por conchas e que a Coleção de Balbino não as contém, sendo
composta, principalmente, por artefatos líticos e de cerâmica.
Outra
curiosidade desta coleção é que as peças catalogadas pelo Museu Nacional, somam
um total de 1.170 peças e o número apresentado por seus proprietários é de 1.075
peças. Acredita-se que o motivo desta diferença é que os proprietários contaram
algumas peças em conjunto. Outro dado interessante sobre as peças é que haveria
uma peça craniana, que não estava à venda, mas que talvez interessasse ao
Museu, nunca apareceu na relação catalogada pelo Museu.
A Coleção Balbino de
Freitas construiu-se como exemplo de patrimônio arqueológico ao longo dos anos,
desde 1900, quando a primeira peça foi coletada, até hoje. Constituir-se
patrimônio e ser apresentado como patrimônio é um processo que vai além da
inscrição em um livro de tombo, por mais que essa etapa seja necessária e
legitimadora. Práticas científicas e o processo de musealização da Arqueologia
também são necessários. Portanto, podemos dizer que ela é formada por elementos
que compõem a história desses grupos, formadores do que conhecemos hoje como
Brasil. Mas ela é também um exemplo da história da prática arqueológica no país
e até mesmo da história do Museu Nacional.
E
por fim, cabe uma ode ou réquiem à Coleção Balbino de Freitas, “protegida” e
tombada num Museu Nacional considerado, até então, um espaço “seguro” e
privilegiado de apresentação do patrimônio. Afastado de seu lugar de origem,
por motivos financeiros ou preservacionistas, a Coleção Balbino de Freitas
viajou, dentro de 18 caixas, por 1400 km até seu destino final. Lá exposta
permaneceu por quase 80 anos, mantida, guardada, exibida e estudada até sua
definitiva extinção.
O
incêndio no Museu Nacional do Brasil, na Quinta da Boa Vista, Rio de Janeiro,
na noite de 2 de setembro de 2018, destruiu quase a totalidade do acervo
histórico e científico construído ao longo de duzentos anos, e que abrangia
cerca de vinte milhões de itens catalogados, entre eles algo que nos
representava e de sua maneira nos orgulhava: A Coleção Balbino de Freitas, hoje
cinzas da nossa história.
A
coleção arqueológica Balbino de Freitas: conchais do litoral sul encontra-se
inscrita no Livro de Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico do IPHAN.
Seu número de inscrição é 014.